Identificação do movimento dançado
Reconhecendo os limites e as fragilidades da visão contextualista teremos de aprofundar a possibilidade de identificar o movimento dançado a partir das suas características, de traços motores próprios que subsistem a qualquer contexto.
Tal como não será por um indivíduo vestir um fato de treino que diremos que ele está a treinar, também não podemos ficar satisfeitos com a ideia simplista de que qualquer movimento acompanhado de música, ou que tenha alguma ritmicidade possa ser considerado como movimento dançado. Os corredores, dos velocistas aos maratonistas têm um ritmo na passada, os autistas têm um ritmo nos seus gestos repetitivos, e não será por isso, que num caso ou no outro dizemos que estão a dançar.
Por isso, para diferenciar o movimento dançado do movimento não-dançado teremos de ir mais além do superficial e compreender os traços que em conjunto contribuem para essa diferenciação, fornecendo uma identidade única à atividade de dançar. O comportamento motor em dança respeita essencialmente as três seguintes condições:
- uma primazia do tempo. Sabe-se que todo o movimento acontece no tempo e no espaço. O movimento dançado não deixa de percorrer uma trajetória, uma direção e todas as outras variáveis espaciais terão obviamente a sua importância mas permitam-nos destacar a sua organização temporal, ou seja, o movimento dançado organiza-se no tempo. O que não é o mesmo que dizer que se organiza na música, apesar de esta normalmente ajudar com as suas referências a estruturar o movimento dançado. A dança pode existir sem a música, não pode é viver sem uma estrutura rítmica motora, que é um traço determinante na sua estruturação. Essa organização no tempo permite por exemplo que uma determinada coreografia seja dançada em palcos muito diferentes, porque está montada, digamos assim, na componente temporal do movimento. Será mais fácil uma adaptação ao espaço do que mexer nas referências temporais em que assenta os seus alicerces. Essa organização temporal inclui nomeadamente uma estrutura rítmica motora, a possibilidade de uma acentuação e um determinado tempi ou tempo motor que se mede em bpm (batimentos por minuto).
- uma primazia da forma. Mais do que uma finalidade (téléocinèse) clara ou uma motricidade ao serviço da comunicação (sémiocinèse) o movimento dançado tem essencialmente uma preocupação formal (morphocinèse)(1). A dança distingue-se assim, segundo Serre (1984) por ser uma motricidade centrada na produção de formas, na busca de configurações corporais e motoras originais. Quando nos deslocamos para ir a um café, por exemplo, não estamos preocupados com a forma como nos deslocamos; a linguagem gestual é interessante de um ponto de vista formal mas a sua preocupação principal será assegurar que a cada gesto corresponderá um significado para que o interlocutor entenda o emissor. A dança está noutro plano, da pura exploração da forma. Da forma como andamos, por exemplo, como fazemos um gesto, um salto, etc..
- uma primazia da frase. Um dos aspetos mais interessantes do movimento dançado será a sua estruturação em frases, sequências com princípio, meio e fim, com uma geometria variável e que permitem o “discurso” coreográfico. Não é um gesto solto, um salto, uma volta ou uma determinada pose que identificam a dança, mas uma sequência, com pelo menos duas ações, que nos permitem distinguir que aquela motricidade se distingue das outras formas de movimento, ou seja, do movimento não-dançado.
(1) Serre, J.C. (1984). La danse parmi les autres formes de motricité. La Recherche en Danse, 3, 135-156.