A dança dita desportiva
Concentremo-nos agora nos outros dois elementos ou traços que ajudam a elaborar o construto de desporto: a regra e o associativismo.
O desporto valoriza a regra, por vezes até a sobrevaloriza, ou seja, é um dos aspetos essenciais do seu ADN. Porque é difícil imaginar uma competição física sem regras. Mas também é difícil imaginar uma dança com regras... Na dança clássica, por exemplo, convencionou-se que todos os movimentos são realizados com en dehors ou turnout (rotação externa dos membros inferiores) e que esses movimentos se iniciam, passam e terminam obrigatoriamente numa de cinco posições dos pés (primeira, segunda, etc.). Podemos considerar que essas convenções são duas regras, mas não existirão muitas mais. A dança no seu âmago é avessa à regra e distancia-se claramente do desporto nesta característica.
Por fim temos o associativismo (clubes, associações, federações nacionais e internacionais, por modalidade ou grupos de modalidade) que inevitavelmente associamos à noção de desporto. Cabe-lhes organizar competições, regulamentar a atividade, definir sanções disciplinares, etc. O desporto não existe sem o dirigente desportivo, sem uma estrutura, uma rede de interesses que visa defender, propagar e desenvolver uma determinada modalidade desportiva. O apoio do estado às federações foi um argumento de peso para o rápido crescimento do número de modalidades desportivas. O processo é relativamente simples: pega-se numa atividade física, convenciona-se um conjunto de regras, organizam-se umas competições, cria-se a necessidade de uma federação e eis que nasce mais uma modalidade desportiva.
Este processo de desportivização das atividades físicas também chegou à dança, por via das danças de salão (ballroom dances) existindo clubes, associações e federações de dança desportiva ou sportdance, com campeonatos regulares (regionais, nacionais e internacionais), campeões e medalhados. Sonham em representar os seus países nos jogos olímpicos! Os atletas, como são designados, podem concorrer nas dez danças ou num dos seguintes dois grupos: latino-americanas (samba, chá chá chá, rumba, paso doble, jive) ou standard (valsa inglesa, tango, valsa vienense, slow foxtrot, quickstep). Para se transformar num desporto foi preciso edificar um conjunto de regras sólido, desde logo a duração (mínimo de 1 minuto a um máximo de 2 minutos), definir um conjunto de figuras permitidas, etc. Seguiu-se o modelo dos chamados aesthetic sports (ginástica rítmica, patinagem artística, natação sincronizada) com um conjunto de jurados avaliando a performance técnica e artística dos atletas. Mas enquanto estes desportos vieram à dança buscar os coreógrafos e as técnicas corporais que lhe permitiram desenvolver a nota artística a par da nota técnica, a dança ao querer ser desporto, caminhou no sentido contrário, encheu-se de regras e mais regras, de competições e mais competições e já agora, de tiques e mais tiques e um elevado índice de estereótipia.
Podemos até aceitar que essa seja mais uma modalidade da dança, a sportdance ou dança desportiva... Tem os seus praticantes e apesar de todos os constrangimentos, ainda dançam... O que não é legitimo é por causa desse fenómeno, circunscrito a uma forma de dança e a um universo muito particular, afirmar que a dança é um desporto, reduzindo-a a uma mera modalidade desportiva. As danças são alternativas aos desportos, porque estão nos seus antípodas, em muitos aspetos, sejam técnicos, psicológicos, sociológicos ou filosóficos. Terão até aspetos semelhantes ou pontos em comum, pois ambos pertencem ao universo da cultura física, criada pelos humanos. Expressam-se através da atividade física, de técnicas corporais específicas, através do movimento humano se quiserem, mas a partir daí divergem em quase tudo. Não vale a pena forçar, neste caso, desportivizar, porque é mais o que se perde do que o que se ganha.